REMINISCÊNCIAS.


Gosto de recordar. Minhas reminiscências me contextualizam no agora que me envolve. É simples. O passado vivido serve como ponto de apoio para a interpretação que faço do presente. Eu sei quem sou, mas em partes. Meu saber tem limites. Está coberto por uma névoa existencial que reconheço instigante. A acessibilidade do que sou passa pelo empenho cuidadoso de minhas investigações. É uma aventura que requer cuidados. Não posso atentar contra o mistério do que sou, antes do tempo. A revelação humana é processual. Dá-se aos poucos, assim como a poesia se dá ao poeta.

Quero ampliar cada vez mais o aperfeiçoamento deste conhecimento. A memória me auxilia. Busco nos registros do passado os detalhes que estão esparramados pelas idades da vida. A infância é um campo fértil destes detalhes. Recordo-me dos primeiros registros que tenho. O menino que sofria de tantos medos ainda está aqui. Dorme nos braços do adulto que me tornei. Eu embalando a mim mesmo. Jeito interessante de reconciliar as fases do tempo num mesmo espaço. Terapia que realizamos sem consultório, quando pela força do entendimento somos capazes de conceder perdão aos erros que cometemos ao longo de nossa história. O adulto olha nos olhos do menino e o aconselha ser mais leve. Propõe que os traumas do passado sejam esquecidos.

Aplica-lhe a pedagogia que sugere que erros não são fontes de castigos, mas de virtudes. Segura pela mão, acende a luz do quarto escuro e o convence que fantasmas não existem.

No movimento cíclico das recordações é possível descobrir caminhos que nos oferecem soluções para questões antigas.


É como sair de casa em busca de um tesouro perdido. Anos e anos de busca até que um ontecimento simples nos faz compreender que o tesouro tão desejado estava enterrado no jardim de nossa primeira morada. E então o caminho de volta. A regressão que nos devolve às raízes. 


Recordar é viver. Creio no dito. Eu o experimento. Por vezes me pego sentido saudades de odores de um tempo há muito já sepultado. Um fio de boa lembrança pode nos fazer reencontrar amores antigos, pisar terras distantes, recordar sabores esquecidos.

Que mecanismo é este? Que força é essa que me conduz a uma cronologia que os relógios já não podem comandar? Um fio tênue está interligando as memórias que resguardo? O homem que cresceu ainda tem direito de chorar pelas mesmas causas do menino? Guarde as respostas.

Vejo os velhos com admiração. Sempre gostei de tê-los por perto. São contextos de riquíssimas consumações. Quando bem vivida, a velhice é a fase da síntese humana. Todas as etapas estão reunidas, sentadas à mesa. O banquete da vida está posto. Os inúmeros personagens que vivemos se entreolham. O que agora está à mesa são os frutos que foram forjados em diferentes épocas.

Os rostos envelhecidos contemplam os rostos mais jovens. As diferenças estão reconciliadas. O rosto final comanda o encontro. É nele que todos os outros descobrem se a vida valeu a pena. Ou não.


Texto jornal O dia de 06/12/2009.

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